Uma afirmação recente feita pelo professor de Direito do Gresham College, na Inglaterra, e conselheiro de Tecnologia da Informação do Lord Chief Justice (principal autoridade judicial do país), Richard Susskind, chocou todo o meio jurídico mundial ao afirmar que a tecnologia e a mercantilização da função tornarão os advogados cada vez menos necessários, e que a profissão como a conhecemos hoje está ameaçada de extinção ou, pelo menos, “à beira de uma transformação fundamental”.
Essas revelações serão feitas no livro chamado The End of Lawyers? (O Fim dos Advogados?) ainda não finalizado, e defende que a mudança se dará por dois fatores: a expansão da tecnologia da informação, que permitirá a qualquer bom leitor entender os meandros da lei, e a mercantilização da profissão, que fará com que a preparação das peças jurídicas seja terceirizada para mão de obra mais barata.
Foram chamados aqui no Brasil para opinar membros da mais alta Corte do Judiciário, bem como famosos juristas das mais diversas áreas do Direito, e a maioria discordou total ou parcialmente dessa conclusão futura, sob os argumentos de que o advogado é indispensável à Justiça, o Direito é técnico, social e complexo, porém com tendência das constituições de todos os países no mundo serem mais homogêneas, a sociedade sempre necessitará de serviços de consultoria jurídica, enquanto existirem conflitos haverá necessidade de papel do advogado, entre outros.
Cabe esclarecer que historicamente todas as idéias revolucionárias sempre causaram grande resistência, inconformismo e clamor público pela manutenção da segurança e conforto da ordem social, e até certo toque de ironia e desprezo pelos visionários. Normalmente, são taxados de loucos, excêntricos, despreparados, entre outros, preferindo-se evitar ao máximo as mudanças de paradigma e condutas convencionais mesmo que arcaicas.
Entretanto, quando se trata de fazer um exercício de futurologia para uma expectativa de 100 anos, podemos regredir no tempo e refletir o que aconteceu a 100 anos passados, e veremos que muitas das idéias revolucionaram o pensamento humano e outras fracassaram, ou foram aprimoradas.
Quem imaginaria que Thomas Edison criaria a lâmpada em 1880, e esta tecnologia revolucionaria o mundo e os hábitos das pessoas? Em 17 de dezembro de 1903, Santos Dumont voaria cerca de 60 metros e a uma altura de dois a três metros com seu 14 Bis, no Campo de Bagatelle em Paris? Henry Ford passaria a fabricar carros em série, e que os primeiros seriam os modelos T, fabricados de 1908 a 1927? Nas décadas de 60 e 70, surgiria rede mundial de computadores, a internet, inicialmente para uso militar e de universidades, e partir de 90, passaria a integrar o mundo? Em 20 de Julho de 1969, Neil Armstrong seria o primeiro Homem a caminhar na Lua? Que em 1975, surgiria o Altair 8800, um computador pessoal baseado na CPU Intel 8080? A partir de 1990, iniciasse no Brasil uma forte expansão em telefonia celular?
O mundo mudou nos últimos 100 anos, várias profissões antes consideradas essenciais, indispensáveis, inerentes à sociedade, extinguiram-se a ponto das novas gerações nem imaginarem ter existido algum dia. E quem garante a sua profissão nos próximos 100 anos? Quantas transformações ainda virão?
O homo sapiens sempre se sentirá atraído por tornar aquilo possível que todos dizem ser impossível.
Não resta dúvida, que se compararmos a evolução das leis, do Judiciário, das faculdades de Direito, e da advocacia brasileira, nos últimos 100 anos, encontraremos uma tecnologia jurídica nunca antes vista ou imaginada, e ainda desde o fim da Ditadura em 1985, temos notado que a velocidade de alterações legislativas, tem tornado a atuação da comunidade jurídica uma verdadeira areia movediça, sempre pensando na preservação do Estado Democrático de Direito, eliminação de burocracias, proteção dos menos favorecidos, entre outros princípios basilares.
Atualmente, vivemos na Era da Informação, temos à disposição um verdadeiro arsenal bibliográfico na internet. As rádios, televisões, jornais, revistas, os meios de comunicação em geral, têm levado a sociedade maior conscientização de seus direitos, das normas, dos julgados, a ponto de muitas pessoas sem formação jurídica, e às vezes até sem instrução educacional discutirem posicionamento de tribunais e o impacto na sociedade.
Hoje, o empresariado busca conhecer as leis, normas e princípios, até às vezes de forma autodidata, para preservar a sua empresa, ou ainda ter maior vantagem competitiva. É comum encontrarmos pequenas e médias empresas, em que o próprio sócio analisa contratos, faz negociação de cláusulas, estipula condições com base em modelos padronizados, e em alguns casos, chegam até consultar as leis e os códigos para dar maior validade jurídica, sem contar quando os contabilistas, administradores, economistas, auxiliam-no na formalização.
Mesmo a expansão de faculdades de direito no Brasil, tem levado ao aumento da consciência jurídica da população, e como será daqui a 100 anos com o surgimento de novas tecnologias?
Como todos sabem, o vocábulo advogar deriva da expressão em latim ad vocatus que designava a terceira pessoa que o litigante chamava perante o juízo para falar a seu favor ou defender o seu interesse, ou seja, é um intermediário.Não resta dúvida que a sociedade mundial nos últimos anos tem buscado constantemente a eliminação dos “intermediários”, vemos isto em todos os segmentos da economia, principalmente em virtude da internet. Pode-se exemplificar o e-commerce, em que se eliminou a figura do vendedor e do representante comercial. Hoje, há empresas com pouquíssimos funcionários ou até de um único funcionário, em que o parque industrial é altamente automatizado, tornando seus produtos extremamente competitivos.
Em 17 de fevereiro de 2006, foi editada a Lei nº 11.280, para disciplinar a utilização de meios eletrônicos nos atos processuais no Poder Judiciário com o fim de assegurar sua autenticidade, integridade e validade jurídica. Neste ponto, cabe uma indagação, este não seria o início do fim da advocacia, dos cartórios judiciais, dos oficiais de justiça, dos leiloeiros (v.g. leilão eletrônico) e demais auxiliares da justiça?
Desde 1995, com a criação dos Juizados Especiais, o cidadão brasileiro já pode acessar o Judiciário sem o auxílio de advogados. Sem contar, a Justiça do Trabalho, em que o trabalhador pode buscar diretamente seus direitos, dentro de certos limites. Além disso, observadas algumas condições, as separações passaram a ser permitidas em cartório de registro das pessoas naturais, tornando a “rescisão” do casamento menos formal e acessível.
Se juntarmos a Era da Informação conjugada com a aproximação do Poder Judiciário com o cidadão comum, somada à tecnologia e a evolução legislativa, a premonição do fim da advocacia pode-se concretizar. Nesse mix, a resolução dos conflitos exigirá maior conhecimento humanístico por parte dos magistrados e dos árbitros nas Câmaras, de forma a mitigar eventuais desvios interpretativos e de realidade social.
Muitos advogados e juristas tem repugnado certa “concorrência desleal” por parte de contabilistas, economistas, administradores, consultores, matemáticos, e vice-e-versa, porém acredito mais na convergência das profissões em uma única especialidade global, em que reúnem todas as competências e conhecimentos de forma a administrar pessoalmente a vida civil e empresarial.
Hoje, um bom advogado já precisa reunir uma gama de conhecimentos fora do Direito para poder atuar de forma efetiva, desfigurando muitas vezes a própria atividade, e isto não se aplica somente para a atividade empresarial, o cliente individual está mais exigente, bem informado, e com necessidades bem mais complexas. E como será daqui a 100 anos?
Para elaborar um contrato ou uma petição, o advogado deve reunir conhecimentos em Direito das áreas cível, consumidor, empresarial, tributária, bancária, propriedade industrial e intelectual, licitações e contratos públicos, etc. para atuar em diversos clientes diferentes.
Tanto a especialização quanto à generalização podem causar uma cegueira para o profissional jurídico, e nesse caos, não tem sido raro o estudo constante de todas as áreas do Direito.
Fora da área do Direito, o bom profissional precisa conhecer de psicologia, sociologia, arte, cultura, música, terceiro setor, economia, finanças, marketing, administração, contabilidade, produção, logística, transporte, engenharia, química, física, religião, comércio exterior.. Ora, aqui cabe uma reflexão, não seria mais fácil ser o especialista de sua própria vida privada ou empresarial?
Por isto, muitas vezes se vê advogados que trabalham dentro de empresas serem promovidos aos altos cargos diretivos, inclusive à presidência, por acabar reunindo tantas competências e habilidades diferentes.
Nesse ponto, muitos criticarão e dirão como ficam as atualizações dessas áreas de competência? A tecnologia futura mostrará como criar as facilidades.
Fazendo um exercício de futurologia, imagine um software de elaboração de contratos automatizado em que o usuário é indagado sobre os detalhes de forma simples e objetiva, e automaticamente, este cria as cláusulas contratuais com base na legislação vigente, e se houver alguma alteração legislativa ou mudança de entendimento dos tribunais, a empresa de tecnologia faz um upgrade de uma nova versão atualizando a cláusula para minimizar os riscos empresariais.
Ou mesmo, um outro programa de acesso aos tribunais, em que o cidadão desejando ingressar com a ação judicial responde a um questionário simples e automatizado em que se elabora a petição inicial, colhe já a exposição dos fatos por meio de gravação e remete ao juiz eletrônico.
Todos os profissionais do direito sabem que o sistema legislativo é dotado de uma lógica estruturada, e nenhum juiz jamais julgará sem uma determinada coerência e com base em certos critérios pessoais, muitas vezes até fixos, mesmo que seja contrária aos interesses das partes.
Quando se discute a súmula vinculante e a repercussão geral, o Judiciário está buscando unificar entendimento, e porque não dizer automatizar os processos judiciais de forma a tornar mais célere a entrega da prestação jurisdicional, com base em certos critérios estabelecidos pela Alta Corte.
No futuro, porque não incluir matérias jurídicas e de negócios desde o ensino médio para que o cidadão brasileiro esteja mais consciente de seus direitos e de como se tornar um empreendedor ou intraempreendedor?
Alguns ainda dirão, e a participação dos advogados em Câmara de Mediação e de Arbitragem? Quem duvida que dentro de 100 anos, poderemos subestimar o poder de negociação do cidadão comum com o nível de informação mundial crescente.
Nos Estados Unidos, já existem sites e softwares de Câmaras de Mediação e de Arbitragem Virtuais em que o cidadão comum já submete os conflitos para a apreciação dos árbitros sem a necessidade de comparecimento pessoal ou auxílio de um advogado, na qual por ano são firmados mais de 1 milhão de acordos em mediação.
Em Portugal, o Laboratório de Resolução Alternativa de Litígios da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa criou o e-Justice Centre do Ministério da Justiça no Second Life, disponibilizando serviços de mediação e arbitragem a todos os avatares para resolução de litígios resultantes de relações de consumo ou quaisquer assentes em contrato celebrado entre as partes (www.ejusticecentre.mj.pt), podendo ser celebrado o acordo neste ambiente virtual sem a representação por advogados tendo plena validade no mundo real.
Diante dessas reflexões, vale a pena repensar os caminhos da advocacia e acompanhar constantemente as tendências ciente de que o impossível pode se tornar possível, e o homem estará em constante evolução tecnológica em benefício da praticidade e do bem estar.
(Fonte: publicado originalmente no jornal “A Comarca do Mundo Jurídico” – ano II, nro 8, jan/08)
Autor: André Sussumu Iizuka
Sócio da Iizuka Advocacia, especialista em Direito da Informática, pós-graduando em Direito Empresarial pela PUC-SP/COGEAE, sócio-fundador do Instituto de Tecnologia de São Caetano do Sul – ITESCS, conveniado à Associação Brasileira de Empresas de Tecnologia da Informação – ABRAT, colaborador nos Comitê de Tecnologia e Informação (COTEC) e Jurídico da Câmara Ítalo-Brasileira de Comércio e Indústria (ITALCAM).